Foto de Christin Hume na Unsplash

O conceito de "Aftercare"

no BDSM e na Não Monogamia por Ade Monteiro

6 min readFeb 2, 2023

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Estava rolando um papo gostoso no zap, falamos sobre não monogamia e ele estava super interessado, disse que a NM fazia todo sentido pra ele e que queria construir relações dessa forma daqui pra frente. Marcamos um encontro pra tal hora em tal lugar e quando chega no dia ele vai mudando as coordenadas “não vou conseguir chegar no horário” , “você pode vir em casa ao invés da gente encontrar lá?”, “me liga hora que chegar porque vou estar no banho” (ele tava mais atrasado que o horário já remarcado)….

Eu vou concordando porque o horário me convém, estar na casa dele talvez fosse melhor pra conversar (embora me gerasse um certo desconforto) e como estou empolgada para o encontro vou ignorando os “sinais”.

Ele me perguntou um dia antes: “você gosta de vinho?” Eu disse “adoro, eu levo um queijo”.

Chego lá com meu queijo, ele tá saindo do banho e nada de vinho. Sentamos no sofá e começamos a conversar, ele vai procurar e encontra um vinho, procura o abridor e depois muda de ideia, diz que pertence à ele e ao companheiro da casa, decide não usar e pede um no delivery. Bem lá no fundinho da minha mente escuto uma voz dizer assim: “é um vinho caro e ele decidiu que não vale a pena abrir com você” (respiro).

Nesse momento já estou bem incomodada mas o incômodo parece ficar lá no inconsciente reprimido pela atração que sinto por ele.

O cara é simpático e charmoso e o papo corre muito bem, ele super interessado na minha história, e me olhando com muito desejo, começa a fazer carinho na minha perna, percebo que a química já está bem forte entre nós. Levantamos pra pegar o vinho eu fui cortar o queijo ele me agarrou por trás de jeito, beijou meu pescoço, subiu e desceu as mãos com firmeza, e eu tô passando mal.

A gente se beija e se pega, ele pergunta se quero ir pro quarto, as coisas estão andando rápido demais, não tenho nada contra transar no primeiro encontro mas geralmente eu conheço a pessoa melhor e vou me sentindo mais segura pra entrar na intimidade, mas esse não era o caso e foda-se porque estava muito bom. rs

O sexo foi maravilhoso, mesmo sendo um pouco precipitado eu tentei relaxar e curtir, o jeito que ele me tocava era com muita vontade e isso me instigou demais (hoje eu me questiono se tudo aquilo era desejo por mim ou se ele tava na seca mesmo?!).

Eu estava com muito tesão mas ele estava com pressa, não deu tempo de eu gozar e eu sei lá porque decidi fingir, mais uma vez, me anulei pra “respeitar o ritmo” do cara. Sinto vergonha de dizer que ainda faço isso, mas tô com essa proposta de ser radicalmente honesta…

Quando termina eu deito no ombro dele, vejo que ele está satisfeito e eu tô meio desnorteada, logo ele diz que tem que ir pro aniversário, ele tá de carro e eu saio a pé da casa dele.

Mandei uma mensagem mais tarde falando qualquer coisa e nada. Dia seguinte nada. No outro dia nada. Eu comecei a ficar puta. Me questiono se estou romantizando: “foi só uma transa”. Mas estávamos conversando muito antes da transa, por que parou depois da transa? Essa transa foi bem intensa, eu acho que esperava algo depois desse tipo de intimidade, um oi, você tá bem? Chegou bem em casa? Qualquer porra. Mas nada.

Começo a bugar pensando: “que estranho, tô me sentindo mal. Tô me sentindo um lixo. É isso, tô me sentindo ‘usada’! Gente, mas esse papo de se sentir ‘usada’ não é meio machista? Eu também não usei ele? Será que estou romantizando? Achando que a pessoa que transa comigo depois tem que ficar ali me dando atenção?

Não consegui digerir a atitude dele. Uns 3 dias depois mandei essa mensagem:

“Se me permite dar um conselho, eu acho gentil mandar mensagem no dia seguinte após sair com uma pessoa, principalmente quando houve algo mais íntimo. Acho um certo descuido não falar um oi nem perguntar nada, como chegou em casa, se tá tudo bem, se curtiu conhecer a pessoa… Não vejo isso como dar a entender que algo mais vai acontecer, mas como uma atitude respeitosa com as mulheres. Me desculpe a sinceridade, mas estou cansada disso acontecer e não me sinto bem de continuar o papo como se essa atitude estivesse ok".

Ele me solta essa: “Desculpe caso tenha se sentido desrespeitada. Se eu soubesse que se sentiria assim, eu teria mandando um oi”.

Bem óbvio que não sabia e essas coisas a gente não tem como avisar antes, e nem deveria né?

Eu poderia ignorar, deixar pra lá, esquecer, bloquear. Mas eu não estava tranquila deixando ele sair numa boa como se não tivesse nenhuma responsabilidade comigo.

A questão é: ele tinha alguma responsabilidade comigo?

Ele deveria me dar um retorno, mandar uma mensagem, após ter conversado online comigo por algumas semanas e depois pessoalmente? E depois que uma pessoa transa com a outra, ela tem alguma responsabilidade ou tá tudo bem ignorar a existência do outro?

A transa é uma conexão mais íntima e profunda que faz aumentar a responsabilidade com quem tivemos essa intimidade?

No paradigma monogâmico não. Porque nesse paradigma, a pessoa que não tem potencial de parceira de vida, não importa muito. Ela “não serve” e pode ser descartada sem muitos rodeios. A pessoa solteira tem um forte respaldo dessa cultura de descarte para sair por aí sendo irresponsável com os outros, objetificando seres humanos, sendo negligente com seus sentimentos, como foi o meu colega acima.

Mas se estamos agora nos propondo novas dinâmicas relacionais, que sejam saudáveis, então eu acredito que sim, que temos responsabilidade com as pessoas que cruzam o nosso caminho, mesmo que por uma noite, mesmo que de forma casual. Precisamos tratar essas pessoas com dignidade e respeito, como qualquer ser humano merece. Mesmo que não desejemos mais uma troca com elas.

Não podemos deixar de tratar as pessoas com respeito e cuidado, por receio de que elas criem expectativas de continuidade. Nosso cuidado não deveria ser entendido como uma promessa de compromisso ou de amor eterno. É por isso que precisaremos ser sempre sinceros, alinhar expectativas e colocar limites. O problema é que não fazemos nada disso, preferimos ser covardes e deixar que as pessoas se sintam como lixos descartados. E somente “aquela pessoa especial”, aquela que cabe no nosso perfil de parceria de vida, somente ela merece respeito e dignidade.

Pois é, mas essa conta não fecha.

Porque seguimos todos descartando e nos sentindo descartáveis.

Aftercare

Muito se fala sobre as preliminares, mas pouco se fala sobre a “pós-liminares”, que seria o chamado AFTERCARE no inglês (trad: cuidado posterior).

“Aftercare é um termo amplo que se refere a como você e sua parceria se apoiam e fazem o check-in depois de uma troca sexual. O sexo pode nos levar nas alturas e nos deixar com todos os tipos de emoções. Podemos nos sentir energizadas ou esgotadas — ou ambos. Algumas pessoas se sentem muito expostas e vulneráveis, como se seu sistema nervoso estivesse acelerado. Esta prática dá a você e seu parceiro a chance de regular e aprofundar seu relacionamento.” Natasha Weiss Blog Intimina

Esse termo que antes era usado exclusivamente no contexto médico/hospitalar, foi trazido para o contexto sexual pela comunidade Kink/BDSM. A comunidade Kink valoriza o aftercare no sentido de oferecer um suporte emocional devido à intensa liberação de adrenalina, cortisol ou oxitocina que pode ocorrer durante a interação. Assim como os níveis desses hormônios aumentam, eles também declinam após a prática e algumas pessoas poderão sentir ansiedade, vergonha ou emoções confusas. “O aftercare ajuda a aliviar a queda hormonal e auxilia as pessoas a integrar suas experiências, é considerado essencial para uma dinâmica saudável”. Natasha Weiss Blog Intimina

O Aftercare é especialmente importante para pessoas com PTSD — que sofreram trauma ou abuso sexual. Nesse contexto a troca sexual pode ativar gatilhos e os sobreviventes tendem a se retirar ou se dissociar durante ou após o sexo. O aftercare possibilita um espaço de cuidado “terapêutico” para que se acalmem e se sintam num espaço seguro e de apoio.

Se a gente pensar na historinha que contei acima a partir de um paradigma de não monogamia ética — onde reconhecemos que todo ser humano merece ser tratado com respeito e dignidade mesmo que não seja um parceiro de longa data — o conceito de Aftercare me parece adequado. Porém acredito que podemos ampliar esse conceito para além da troca sexual e incluir a troca afetiva, até porque, muitas vezes não sabemos onde termina um e começa o outro. No BDSM mesmo, muitas trocas não envolvem genitais ou mesmo um contato mais íntimo, seriam essas trocas sexuais, afetivas ou nenhuma das alternativas?

Será que conseguimos praticar o Aftercare com as pessoas que nos relacionamos ou seguiremos reproduzindo a lógica do descarte?

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Reflexões e Conexões NãoMono

Conscientização sobre a Não Monogamia Ética organizando conteúdo e espaços de reflexão e conexão entre as pessoas que se identificam com o tema.